sábado, 14 de novembro de 2009

Bolas, havia amor!_impressões de autocarro I

Ultimamente os meus dias têm-se resumido em viagens de autocarro. Entre o 728 e o 729, os meus pensamentos vagueiam como o fumo de um cigarrilha francesa. Sempre de ipod ligado, lá vou varrendo as ruas e caras com um olhar dessinteressado. Se bem que no que diz respeito às caras, consigo ser mais criteriosa, isto é, observo bastante e tento encontrar possíveis linhas de história. Mas atenção, já faço isto de uma forma completamente automática e imediata. Chega a ser cansativo afinal de contas são tantas caras diferentes, tantos nomes, tantas possíveis "histórias", tantas vidas. É estranho.

Houve um dia em que me cheguei a perguntar, como é que era possível existirem tantas caras, tão diferentes, sem nunca haver uma repetição em nenhum aspecto. Como é que é possível que cada pessoa consiga ser diferente à sua maneira se existem tantas no mundo. Terão de existir algumas repetições ou não? Se de facto cada um de nós tem uma cara única e singular, como é que é possível terem-se tantas e não haver uma "cópia de traço"? A questão é que não encontrei um único nariz ou boca parecida. Não. Cada pessoa é portentora de uma cara e portanto, de um nome, de uma possível "história" e de uma vida.
Tenho visto de tudo: desde adolescentes dessinteressadas e impacientes agarradas àquele pequeno retângulo luminoso a velhotas que no meio de tanto solavanco do autocarro, conseguem caminhar com uma sabedoria cuidadosa que já sabe bem quando e como se agarrar.
Miúdos irrequietos e barulhentos a mulheres trabalhadoras de olhar cansado com o seu saquinho de papel já bem amarrotado de tanto uso. Universitários tagarelas ou jovens introspectivos que nem para passar entre os restantes passageiros emitem algum som. Raparigas de cabelo já gasto de tanta descoloração feita e supostos "desportistas" de calções curtos. Mães com filhos ao colo e filhos, espevitados por sinal, sem mães ao pé. E muito mais há que com tempo logo retratarei com calma.

Então um dia destes, numa chegada a casa mais do que tardia, daquelas em que o céu já nem azul é-é uma espécie de preto meio ingrato-assisti a uma situação irritantemente romântica, estupidamente cúmplice e injustamente perfeita. No meio de um autocarro barulhento, cheio e húmido deitei o olhar para rua, como o faço milhares de vezes, e dei com um casal relativamente jovem.

Ele, mais alto do que ela, olhava para ela que estava junto a si, mesmo à sua frente e inclina-se para a beijar. Ela retribui. O beijo além de longo foi terno e sentido. De tal forma, que o me fez continuar a olhar foi a entrega da rapariga: esta deixou-se agarrar e com um suspiro que se manifestou por toda a sua espinha, entregou-lhe ali mesmo a sua vida, o seu ser. Não, não é exagero. Consegui ver o seu suspiro através das suas costas. Toda ela foi movimento. E ele, sólido e forte, recebe-a de olhos bem fechados e sorriso nos cantos da sua boca. Havia resposta, havia conexão. Bolas, havia amor!
Presenciei, ali por momentos, a uma coisa extremamente íntima e profunda, céus! Acreditem! Se tivesse olhado para outro sítio, olharia para eles e nada veria. De lamechas pouco ou nada tinha. Ela estava normalíssima de rabo de cavalo e casaco, ele de chapéu (boné) e casaco quente, por sinal, e após aquele longo beijo separaram-se por direcções opostas. Ele tirou as chaves do carro e abriu a sua porta e ela, sem olhar mais para trás, seguiu em frente em passo decidido com o seu rabo de cavalo enérgico.

Enfim...é por isto que gosto de andar de autocarro. Porque me sinto uma observadora constante na minha pequena redoma em forma de cadeira de tecido azul e janela lateral. A minha janela. A janela que apesar de passar todos os dias pelos mesmos dias, me consegue mostrar coisas diferentes.




*





[Escrevo estas linhas em surdina. Quase que escondo o que tenciono escrever, como criança em teste com medo de ser copiado. Não me levem muito a sério. Ou pelo menos não as levem (as linhas) a peito. Leiam-nas e saboreiem-nas apenas na boca o gosto que vos tento passar. Mas não o digiram na cabeça. Não tornem as coisas complicadas, que para isso já cá estou eu.]
[Amber Valleta numa sessão fotográfica para a Elle US por Michelangelo di Battistta]

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