domingo, 11 de julho de 2010

Uma Queda Amortecida

[Ouço-a enquanto penso nos últimos dias, nas últimas semanas, no último mês. Aconteceu tanta coisa. E eu sabia que iria ser assim. Nunca pensei é que fosse tão repentino. Mas agora está tudo calmo. Por enquanto. Portas fecham-se, janelas hesitam em abrir-se. Faz o que se pode. E o tempo vai passando.]


(suspiro)....por onde começar, meus caros? Não faço a menor ideia.

Talvez por aqueles três dias que nunca mais me abandonarão até ao descanço final do meu cérebro. Foram três dias de ritual social completamente novo para mim. Morte. Velório. Funeral. Não escarafuncho a ferida que ainda sangra em surdina mas as imagens merecem ser transmitidas já que agora fazem parte do meu organismo. Foram absorvidas. Não há volta a dar.

Noite de 19 de Junho do ano corrente: Entro em casa dele. Sou avisada que será naquela noite. Uma questão de horas. Foram minutos. Foi o tempo de entrar, cumprimentar a minha avó, tirar o casaco, ir espreitar o meu avó, sentar-me no sofá da sala e brincar vagamente com um gato. E chegou.
Lá ao fundo do corredor ouvem-se as batidas mecanicas e secas da máquina de oxigénio. A luz fracamente amarela sai da divisão.Os gatos deambulam pelo chão castanho silenciosamente. Está uma noite calma. Penso em coisas várias ao som da máquina distante que nas últimas semanas tornou-se barulho de fundo. Brinco com um gato perdido no sofá. Parece uma pessoa. Distraio-me a admirá-lo. A avó sai rapidamente do quarto para a casa de banho. "Rebentou-lhe o abcesso que tinha" atira o meu tio. Os movimentos lentos e delicados de outrora desdobram-se em movimentações apressadas e eficazes. A máquina de oxigénio começa a trabalhar com afinco. A coisa não parece estar fácil. Fico em sobressalto mas continuo a fitar o gato. Não haveria de ser nada de complicado. O homem já passou por pior nos últimos dias. Os três param finalmente junto dele na divisão amarelada. O meu pai, a minha avó e o meu tio. De repente deixo de ouvir a máquina de oxigénio. Silêncio total. Parece que os segundos flutuam pela sala mal iluminada. Mau sinal. Péssimo presságio. Coração aos saltos. Completamente descordenado. Mas as lágrimas estão proibidas de sair. Afasto o gato. O silêncio continua. Hesito. Espero. Ninguém me diz nada. Mudo de sofá. O relógio marca as 22:52. Espero. Os segundos são tão lentos. De repente lá no fundo oiço finalmente um suspiro choroso. Pronto. Não preciso que me digam mais nada. Acabou-se. A avó sai da divisão com pedaços de papel higiénico ou de tecido. Nem me lembro bem. A sua expressão é de agonia. É de tristeza. É de dor. É de saudade antecipada. Basta-me dirigir-lhe o olhar para ela me dar um aceno de cabeça envolto em lágrimas. "O teu avó acabou de...". E não me lembro do resto. Não sei se foi "morrer" ou "partir". Não me lembro. Pronto. Lentamente, quase que com medo de partir os meus ossos de cristal, levanto-me. Dou um passo. "Será que posso entrar" pergunto-me. Dou um segundo passo. Dou o terceiro. Dou o quarto e o quinto. Chego ao sexto e encosto-me à ombreira do quarto. Hesito. E olho para ele. Lá estava ele. O nosso guerreiro. O nosso "professor". O que está sempre em primeiro lugar na lista de prendas de Natal. O que me chegou a ir buscar à escola com o Nissan preto. O que me levou a várias matinés. O que ia vestir um smoking assim que ficasse melhor e me levaria à Ópera no São Carlos. O avô Rui.

[Provavelmente não devia estar a avivar as memórias desta forma mas tinha de escrever. Tinha de ser. E por esta altura isto já está na fase final do processo de exorcismo. A coisa já está a ficar mais digerida mas é claro que há golpes diários que são muito traiçoeiros. Ainda há dias sonhei com ele. Que sonho tão nítido, meu deus. Acordei até maldisposta.]

Os passos seguintes foram melindrosos e não menos difíceis. É um conjunto de imagens que ficará para sempre na minha memória: a imagem do meu pai e do meu tio a vesti-lo. Um corpo agora sem qualquer tipo de vida. Mole. Frio. Mas com as suas meias de seda pretas. O meu pai acaba de lhe calçar a meia direita enquanto o meu tio dá conta da esquerda. Estava ele deitado na cama. Completamente magrinho. Enfezado. Quase Ghandi. E com as suas meias de seda pretas. O toque era único.
Ao longo da noite a família vai chegando e a ideia vai sendo aceite. Tios, tias e prima. Andávamos a deambular pela casa. Cada um oferece palavras de conforto à recém viúva. E cada um senta-se ao lado do corpo do avô pela última vez. Não estou com vontade de ser social. Entro então na divisão antes do seu quarto. Sento-me no sofá da sala dos livros e olho para todas aquelas lombadas amarelecidas. Olho para a cadeira. Olho para as molduras. Olho para o tapete. Não serei capaz de voltar a entrar nesta divisão sem ele aqui sentado à minha espera. Gozando da minha privacidade, do silêncio e com ele deitado no quarto ao lado, suspiro e aí sim, choro. Lágrima atrás de lágrima cai-me pelo rosto abaixo. São tão pesadas. Não sei quantos minutos passaram mas fiz o meu luto ali. Chorei o que precisava e fiquei despachada...até ao dia seguinte. Não sou pessoa de chorar e muito menos à frente de terceiros. O dia seguinte foi o do velório. Chegámos mais tarde porque a minha mãe resolveu fazer o obituário do meu avó no Dn que ficou belíssimo. O velório até correu bem. O ambiente não era propriamente pesado. Também não seria assim que ele teria querido. De certeza. Conheci pessoas novas para mim mas antigas figuras na vida do meu avô. Eu sabia que este dia seria parecido com a cena final do filme "Big Fish": todas as pessoas que passaram pela sua vida, iriam passar também e uma última vez por ele. O dia correu bem mas foi longo. Saídos da capela às 22h fomos comer qualquer coisa. E aí está outra imagem que nunca hei-de esquecer: eu, a minha mãe e o meu pai sentados ao balcão do "Galeto" completamente cansados e derrotados a olhar para o vago em silêncio durante, pelo menos, uns três minutos. Que dia tão comprido. O apetite era fraco mas as batatas fritas continuavam a entrar na boca, umas atrás das outras. Quando chegados a casa estava na altura de contar ao Henrique. Outro rude golpe. "Sabes que o avô estava muito doente, não sabes?" começa o meu pai. E antes de poder virar as costas para esconder a cara, uma lágrima gorda e pesada cai. Que murro na barriga. A realidade quando exposta em palavras é tramada.
O dia seguinte foi o do funeral e foi mais intenso. Foi um dia forte. Não houve brincadeiras nem muitos risos. Outra imagem para sempre: quando puseram o caixão uma última vez em cima de uma estrutura de ferro para que os familiares pudessem despedir-se. O filhos e a mulher aproximam-se e põem as mãos em cima da peça de madeira e quase que numa oração conjunta silenciosa despedem-se. Não é para fracos, isto. O ambiente adensa-se. A peça de madeira é deitada na cova e às primeiras pás de terra, a minha avó afasta-se e sai dali. Não é uma coisa bonita de se ver. Não me mexi um milímetro. Estava ali para acompanhar o processo todo. Estive lá no início da doença, no início da queda, naquela noite e não seria agora que ia afastar-me. Os momentos bons são precisos mas os maus também têm se ser enfrentados.

O pensamento mais óbvio é o típico e tradicional "por muito que façamos na vida, por inúmeras pessoas que conheçamos, por vários dramas que tenhamos ao longo da vida, a morte é sempre certa". O fim é ali e todos nós vamos lá ter um dia. Chamem-se fatalista, derrotista, pessimista mas a verdade é que a vida TEM que ser aproveitada enquanto se pode porque o prazo de validade já está marcado. A partir daquela tarde quente passada entre lágrimas, suspiros e silêncios, o caminho parecia ser sempre em frente. A saudade é uma merda, é verdade, mas tento pensar que ainda o sinto cá. Há tanta coisa que me faz lembrar-me dele que é quase como se ele não tivesse ido completamente. Os livros, as histórias, a minha avô, os hábitos e acima de tudo, o meu pai. A coisa está longe de ser fácil mas não há muito a acrescentar. Foi uma queda amortecida. Foi um ciclo que se fechou.




*


[Adoro esta foto tirada por Edward Clarke durante o funeral do presidente Roosevelt. Este é o sr. Graham Jackson que toca "Going Home" enquanto o corpo do presidente passa. Uma das fotografias mais emblemáticas da carreira de Clarke e da saudosa revista LIFE, é claro.]

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